domingo, 4 de abril de 2010

Um Velho Feliz

É difícil; não só para mim. Não sei como era antes, nesta época em que vivo me sinto sem chão. Sei que não sou o primeiro, nem serei o último. "Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos.", foi o que ouvi em algum lugar, e isto também: "Leitura, há muito tempo dizem que não paramos sequer para pensar, quanto mais para ler. Registros escritos são coisas do passado!" No entanto, como me sinto só, tão estranho, diferente mesmo, encontro tempo para escrever-te, Diário. Genes de minha mãe. Sim, vai ver é isto. De meu pai herdei o fascínio (hoje servidão) à tecnologia. Sinto que algo está errado; não defini ainda o quê. No dia-a-dia, no trabalho e nos relacionamentos, e não falo do diagrama de entidades ou outro qualquer. Coisa estranha, falo de pessoas! Pessoas de verdade, não dos links nas redes, de frágeis ligações. Assisti a um fóssil hollywoodiano chamado O Show de Truman, precursor de nossa civilização, mas só um pouquinho... Quase acertaram! Não entendo porquê meus relacionamentos não dão certo. A cada nova namorada, votada pela galera, começamos a nos relacionar e atualizar os v-logs. Vez em quando acontece uma votação e o processo é abortado. A garota chora, ri ou não faz nada; a galera opina de todo jeito, e eu me sinto mais vazio que antes pensava sentir. Tenho a sensação de que não decido nada (de fato) em minha vida. Vi os registros em vídeo, dos meus avós. Velha tecnologia sempre me atraiu. “Hoje as coisas estão tão rápidas”, eles diziam, “que uma geração SÓ em breve seria passado remoto, no ++ que (im-) perfeito conjugado”. Nestes vídeos meus pais se amavam, eles diziam, de um modo muito diferente deste que vivencio. Eles ainda se tocavam, se sentiam, trocavam fluídos e visões de vida, sem medo de decepções. O que será significa essa “vida” da qual eles tanto falavam? Queres saber de uma coisa, Diário: não compreendo nada disto e invejo meus pais e avós. Paro por aqui. Necessito voltar aos v-logs. Se não atualizo, a galera desconfia de algo errado e vem bater aqui. Tenho que tomar cuidado. Poderei ser um velho feliz, sei disto, se sobreviver à adolescência. Que Deus me ajude! Deus, que Deus?! Genes da minha mãe, são os genes... só pode ser esta velharia.




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Revisado em 18.09.2010



Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 04/04/2010
Código do texto: T2176543


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