domingo, 29 de agosto de 2010

Cotidiano

Quando acordou tocava no rádio o Chico: “todo dia ela faz tudo sempre igual me sacode às três horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã”. Levantou-se, tomou banho, café, lavou os dentes, saiu e foi esperar o ônibus. Coisa difícil, vaga pra estacionar; bom ter deixado o carro em casa, sem falar que, fora a fila dos ônibus, nenhuma outra parecia andar. No escritório, bateu o ponto, começou o trabalho. Nova lista de protocolos para preencher. Conferiu agenda, organizou tudo. Caso estorno de cartão, o primeiro. Quinze minutos antes do almoço, chega a colega Rosa e o espera para saírem. 'A Lazanha do Toni hoje está ótima.' 'Então vamos lá!' 'E o que fizeste hoje?' 'Mais protocolos, pra variar...' Ela sorriu: 'Normal.' Uma hora depois, volta do almoço, de volta ao trabalho: 'No final do dia passo pra te apanhar' -- pegaria carona com a Rosinha. 'Outros dez casos de uso... Coragem, vamos lá!' Final do dia, chegou Rosinha. 'E aí, tudo pronto?' 'Peraí, deixa eu arquivar...' Abriu a porta do armário e uma surpresa o esperava: uma pasta com 20 protocolos, iguaizinhos aos de hoje, todos lá, arquivados. Mesmos comentários, mesmas descrições... 'Penso sempre igual?', cogitou. Antes de pensar que enlouquecia, leu o bilhete e seguiu as instruções: 'Para não fazer tudo de novo, otário, não esqueça de colar este bilhete na capa da agenda antes de sair. "Eu sou você amanhã!" e você já viveu esta história! Um abraço e até a próxima.' Falou pra Rosinha: 'Fiz de novo! Me lembra amanhã de voltar ao neurologista?' Ela o olhou, estranhando, e só disse que tudo bem.




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Revisado em 17.09.2010
Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 29/08/2010
Código do texto: T2465948




Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original.). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Tomar...

leite, banho, chá de cadeira
vergonha, surra, satisfações
na cara, no ouvido, erva cidreira
jeito, consciência, uns safanões

notas, tempo, vinho e sangria
“tento”, coragem, remédio, carão
benção, cerveja, pílula e pinga
rumo na vida, café, direção

Tome!

                  * * *

Da série
‘Poesia básica trivial e necessária - para mim!! -
Verso de cada dia nos dai hoje, sim?’
Helena Frenzel
Publicado também no Recanto das Letras em 24/08/2010
Código do texto: T2456867




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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Yo, tambíen

Como sempre digo, tenho a impressão de que certas coisas acontecem comigo exatamente quando têm que acontecer. Superstição? Pode ser, porém não é sobre isto que quero escrever, sim sobre o filme “yo, también”, que há vários dias estava querendo assistir quando uma amiga me chamou para irmos ver.

Veja bem: eu quase não assisto TV, de modo que, dia desses, querendo dar um descanso aos neurônios, me esparramei no sofá da sala e liguei a televisão. Besteirol e séries formato americano: como não sou masoquista, sai pra lá! Me sobram os canais de cultura e documentários. Dentre os filmes que exibiriam em breve nas telas não-convencionais, ouvi falar de “yo, también”, de Álvaro Pastor e Antonio Naharo, filme espanhol que trata, além de amor e amizade, também do tema da integração de pessoas que têm síndrome de Down.

De acordo com informações do site oficial, este filme ganhou vários prêmios, incluindo o Goya 2010 de melhor atriz principal (Lola Dueñas, que interpreta Laura) e melhor canção (Guille Milkyway).

Vamos à história: Daniel Sanz, um jovem de 34 anos, é o primeiro europeu com síndrome de Down a conquistar um diploma universitário. Em seu primeiro emprego, numa repartição pública, conhece a colega Laura, por quem se interessa desde o primeiro dia. Com a convivência, os dois vão se tornando grandes amigos. Os problemas começam quando a família de Daniel e a própria Laura, que é uma mulher livre e amável, porém muito solitária e marcada por um conflito familiar, começam a se dar conta dos planos de Daniel no tocante ao amor.

Daniel Sanz é interpretado por Pablo Pineda, vencedor da Concha de Prata na categoria de melhor ator no Festival de San Sebastian 2009. Portador da síndrome de Down, em quatro anos Pablo conquistou seu diploma universitário em Educação e Serviço Social e hoje trabalha com Educação Especial.

Impressões: “yo, también” é um filme interessante não apenas pela temática, também pelos diálogos, trilha sonora e montagem. É um filme para fazer pensar nos problemas práticos da integração de deficientes, e na forma como a sociedade reage, questionando também o conceito de “ser normal”. E faz isso de forma leve, e com pitadas de humor. Não reproduzo alguns diálogos que me arrancaram risos para não estragar a surpresa de quem ainda não viu e quer ver – talvez exibam no Brasil ou até já tenha sido exibido, pois o filme foi lançado em 2009. Seja como for, vale a dica.

Talvez o filme mostre alguns aspectos da integração de forma açucarada, não sei, pois não tenho experiência no convívio com portadores da síndrome de Down. Conheço, porém, um casal cuja filha é portadora. A mãe, uma pessoa muito bem informada, me disse certa vez que não via vantagens na integração com “normais”, sob o argumento de que nem todos os afetados reagem tão bem à constatação das diferenças, o quê, no fim, pode lhes causar muito mais sofrimentos que benefícios, e por isso ela defende a necessidade de programas especiais.

A filha é maior de 25 anos, trabalha e, ao que tudo indica, está se preparando para trocar em breve a casa dos pais por um apartamento, num condomínio especialmente projetado para portadores da síndrome, onde, espera-se, possa viver com mais independência.

Em suma, um filme humano, que me fez pensar sobre vários aspectos da integração, e montado de forma tão sensível que certas cenas não deixam de ocupar um lugar especial em minha galeria de recordações.


Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 19/08/2010
Código do texto: T2447360


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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Caso do Pinto


Você já me conhece do conto da Teresa Mariana, uma que se treme de medo só de pensar em bichos como eu. Pois é, sobrevivi a ela: a uma panela cheia de água fervendo na cabeça. Dessas coisas é difícil se escapar. Tive sorte!

Me chamam, em geral, réptil. De fato, sou um cobra macho, maxixe, maduro, um cobra honrado. Pois vamos aos fatos: depois da tentativa de assassinato -- e parece que a Teresa Mariana inda hoje não se perdoou, coitada... Se bem que... O quê será que eu fiz pra ser tratado daquele jeito? Eu só queria tomar um solzinho, oras! Também sou cria de Deus. Quer saber de uma coisa? Da culpa da Mariana achei foi pouco!  Culpa é igual abraço de sucuri: mata pelo sufoco e mói os ossos no final. Deus que me livre!

Pois certo, como eu ia dizendo, depois da tentativa de assassinato escapei fedendo da água fervendo e passei um bom tempo pra me recuperar dos chamuscados. Logo eu, com uma pele tão bonita... Jibóia assim, exótica, coisa rara de encontrar. Daí que, como não podia me arrastar muito, pelas queimaduras, me escondi nos arredores. Ficava contente quando alguma perereca aventureira se afastava do brejo e passava pelas bandas lá do meu esconderijo. Tempos difíceis aqueles, se eu comia duas vezes por semana era muito. E por isso emagreci.

Um belo dia, não podendo mais conter os protestos da barriga, e estando já com a pele renovada, lógico que decidi sair. Com uma fome da Cacilda, tudo o que eu via tinha forma de comida. Encontrei um buraco na cerca e fui bater na casa vizinha. Menino, um paraíso! Mais forte ficou a impressão, pois esse paraíso foi a última coisa na terra que eu vivi.

Pois sim, conto essa história de além-vida. Não sei explicar direito onde estou, e não encontrei ainda outros despachados pra perguntar se aqui é o céu ou o inferno das cobrinhas. Pela impressão que tenho, de que aqui não acontece nada, coisa nenhuma, só pode ser mesmo o céu, mas isto não posso afirmar.

Voltemos aos meus momentos finais: se bem me lembro era um dia de sol. Havia comido no dia anterior e, pra fazer a digestão, como não podia me mexer ainda com tanta destreza, me arrastei para fora do esconderijo, pois queria tomar um pouco de sol, e deixei de fora menos da metade do corpo.

Ah o sol... Eu adorava o sol. Por aqui há sempre uma luz branca, mas não tenho como saber se é a mesma luz do sol... acho que não é. Pois bem, eu estava ali no meu prazer matinal quando a histérica da dona da casa, procurando um pinto sumido, que noite passada não tinha aparecido pra se agasalhar, deu comigo ali quase dormindo e saiu ponta-de-pé pra ir chamar o marido, e este veio imediatamente com um pedaço de pau.

Calculei mal o diâmetro e o peso da barriga de modo que, quando quis voltar ao esconderijo, tarde demais: morri com um golpe certeiro na cabeça. Passado o choque da passagem, percebi que ainda estava por ali. Vi quando carregaram meu corpo e o jogaram à beira de uma estrada, em frente a um matagal. Fiquei me perguntando o que pretendiam: assustar mais gente? Por que não me deram um enterro normal? O que lhes custaria isso no final das contas?

Passei uns dias ali me decompondo até que além dos ossos sobraram também as penas do meu delator. “Acharam o pinto!”, bradou o caseiro. “E onde estava?”, perguntou a mandante do crime. “Na barriga da cobra que o sinhozinho matou.”

Assim é a vida. Pelo menos por aqui não sinto nada: sede, fome, dor, e até agora não vi ninguém com panelas cheias de água fervendo ou pedaços de pau. Talvez eu esteja mesmo no paraíso, pois nem o espírito do pinto bandido aparece pra me tentar.

Resisti a ele o quanto pude, juro. Limpei o sítio de sapos, ratos e lagartos, tudo enquanto era bicho menor do que eu. Esse negócio de cadeia alimentar só dá nisso: quem não come será comido, coisa natural. Vai ver foi por isso que Deus criou os sapos e as pererecas. Ah, e os ratos também. Mas tinha, tinha que aparecer um pinto suicida no meu caminho?!

A vida por aqui é boa, não me queixo. Todavia me falta um pouco de sol.... Ah o sol... saudade doída que eu tenho do sol.



Pra conhecer o começo da história leia
O Assassinato da Cobra

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Revisado em 18.09.2010


Pra conhecer o começo da história leia
O Assassinato da Cobra

Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 18/08/2010
Código do texto: T2445418



Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (Para ter acesso a conteúdo atual aconselha-se, ao invés de reproduzir, usar um link para o texto original.). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Complexo de dôtor

Pra completar o post anterior, confira este aqui também!

Se o autor não mudou o texto, concordo em gênero, número, grau, cor e... Ah, vá ler o texto ocê messsm, uai!

Doutor
Blog Uai Mundo? O Blog do Cacá (José Cláudio Adão)

Complexo de vira-lata de alguns brasileiros

Lendo um jornal hoje (jornal brasileiro), dei de cara com "complexo de vira-lata" num artigo. Não sabendo ao certo o que significava (tendo só uma leve idéia) fui logo pesquisar. Olhe só o que eu achei? Um artigo interessante (se a autora não mudou o conteúdo nesse meio-tempo em que escrevo), bem escrito e... vale a pena ler. Não falo mais pra não ficar chovendo no molhado.

Vamos refletir sobre o complexo de vira-lata dos brasileiros
Site: Carreirasolo.org (Barbara Axt)