quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Caso do Pinto


Você já me conhece do conto da Teresa Mariana, uma que se treme de medo só de pensar em bichos como eu. Pois é, sobrevivi a ela: a uma panela cheia de água fervendo na cabeça. Dessas coisas é difícil se escapar. Tive sorte!

Me chamam, em geral, réptil. De fato, sou um cobra macho, maxixe, maduro, um cobra honrado. Pois vamos aos fatos: depois da tentativa de assassinato -- e parece que a Teresa Mariana inda hoje não se perdoou, coitada... Se bem que... O quê será que eu fiz pra ser tratado daquele jeito? Eu só queria tomar um solzinho, oras! Também sou cria de Deus. Quer saber de uma coisa? Da culpa da Mariana achei foi pouco!  Culpa é igual abraço de sucuri: mata pelo sufoco e mói os ossos no final. Deus que me livre!

Pois certo, como eu ia dizendo, depois da tentativa de assassinato escapei fedendo da água fervendo e passei um bom tempo pra me recuperar dos chamuscados. Logo eu, com uma pele tão bonita... Jibóia assim, exótica, coisa rara de encontrar. Daí que, como não podia me arrastar muito, pelas queimaduras, me escondi nos arredores. Ficava contente quando alguma perereca aventureira se afastava do brejo e passava pelas bandas lá do meu esconderijo. Tempos difíceis aqueles, se eu comia duas vezes por semana era muito. E por isso emagreci.

Um belo dia, não podendo mais conter os protestos da barriga, e estando já com a pele renovada, lógico que decidi sair. Com uma fome da Cacilda, tudo o que eu via tinha forma de comida. Encontrei um buraco na cerca e fui bater na casa vizinha. Menino, um paraíso! Mais forte ficou a impressão, pois esse paraíso foi a última coisa na terra que eu vivi.

Pois sim, conto essa história de além-vida. Não sei explicar direito onde estou, e não encontrei ainda outros despachados pra perguntar se aqui é o céu ou o inferno das cobrinhas. Pela impressão que tenho, de que aqui não acontece nada, coisa nenhuma, só pode ser mesmo o céu, mas isto não posso afirmar.

Voltemos aos meus momentos finais: se bem me lembro era um dia de sol. Havia comido no dia anterior e, pra fazer a digestão, como não podia me mexer ainda com tanta destreza, me arrastei para fora do esconderijo, pois queria tomar um pouco de sol, e deixei de fora menos da metade do corpo.

Ah o sol... Eu adorava o sol. Por aqui há sempre uma luz branca, mas não tenho como saber se é a mesma luz do sol... acho que não é. Pois bem, eu estava ali no meu prazer matinal quando a histérica da dona da casa, procurando um pinto sumido, que noite passada não tinha aparecido pra se agasalhar, deu comigo ali quase dormindo e saiu ponta-de-pé pra ir chamar o marido, e este veio imediatamente com um pedaço de pau.

Calculei mal o diâmetro e o peso da barriga de modo que, quando quis voltar ao esconderijo, tarde demais: morri com um golpe certeiro na cabeça. Passado o choque da passagem, percebi que ainda estava por ali. Vi quando carregaram meu corpo e o jogaram à beira de uma estrada, em frente a um matagal. Fiquei me perguntando o que pretendiam: assustar mais gente? Por que não me deram um enterro normal? O que lhes custaria isso no final das contas?

Passei uns dias ali me decompondo até que além dos ossos sobraram também as penas do meu delator. “Acharam o pinto!”, bradou o caseiro. “E onde estava?”, perguntou a mandante do crime. “Na barriga da cobra que o sinhozinho matou.”

Assim é a vida. Pelo menos por aqui não sinto nada: sede, fome, dor, e até agora não vi ninguém com panelas cheias de água fervendo ou pedaços de pau. Talvez eu esteja mesmo no paraíso, pois nem o espírito do pinto bandido aparece pra me tentar.

Resisti a ele o quanto pude, juro. Limpei o sítio de sapos, ratos e lagartos, tudo enquanto era bicho menor do que eu. Esse negócio de cadeia alimentar só dá nisso: quem não come será comido, coisa natural. Vai ver foi por isso que Deus criou os sapos e as pererecas. Ah, e os ratos também. Mas tinha, tinha que aparecer um pinto suicida no meu caminho?!

A vida por aqui é boa, não me queixo. Todavia me falta um pouco de sol.... Ah o sol... saudade doída que eu tenho do sol.



Pra conhecer o começo da história leia
O Assassinato da Cobra

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Revisado em 18.09.2010


Pra conhecer o começo da história leia
O Assassinato da Cobra

Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 18/08/2010
Código do texto: T2445418



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